IARA
Semira Adler Vainsencher
Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco
Analisando-se a história da humanidade, é possível perceber que a figura da mulher-peixe tem sido freqüentemente utilizada. Esse mito, na Antigüidade, se apresentava com o corpo de pássaro, e com o busto e o rosto de mulher. Estava sempre associado, também, às divindades da morte e ao culto dos mortos, o que pode ser evidenciado por intermédio das estátuas de sereias presentes nos sepulcros. Com o passar do tempo, no entanto, sua forma se transformou, e a metade pássaro foi substituída por uma cauda de peixe. Atualmente, as sereias são chamadas de Mermaid, na Dinamarca; Sirena, na Espanha; Loreley, na Alemanha; Nereidas, na Grécia; assim como de outras denominações.
A mulher-peixe chegou ao País, depois do descobrimento, através dos seus colonizadores. Estes, além da presença física, da língua e dos hábitos, trouxeram, ainda, os seus valores, mitos, lendas e superstições. Nesse sentido, a herança cultural européia misturou-se às culturas indígena e africana, permutaram-se conhecimentos e valores, surgindo, através do sincretismo, um amálgama sui generis. Na Região Norte, em particular, a permanente interação com os rios e igarapés, por parte dos(as) caboclos(as), deu origem a várias lendas que evidenciam elementos representativos da vida e da morte. A Iara, uma das mais belas figuras aquáticas, é uma delas.
Para os índios, Iara significa Senhora das Águas ou Ninfa das Águas. Também é chamada de Uyára e, em tupi, de Uauyára, representando uma figura de dupla imagem, que pode ser tanto feminina quanto masculina. De acordo com os nortistas, a sereia habita nos rios e em seus afluentes, mas só aparece diante de homens solteiros, ou daqueles que estão prestes a se casar. Sendo metade peixe e metade mulher, ela pode ser vista penteando os cabelos, cantando ou, simplesmente, conversando com algum transeunte. E o pretenso parceiro, como se estivesse sob efeito hipnótico, é levado para as águas profundas, morrendo logo afogado.
De acordo com estudiosos, a Iara representa a simbiose encantada de uma mulher tentadora: possui um bonito rosto europeu - com cabelos louros e traços delicados - uma cauda de peixe sempre submersa, com escamas de várias cores, e uma voz maravilhosa. Por meio de seu canto, ela exerce, inclusive, uma atração irresistível junto aos homens, conseguindo arrastá-los para o fundo das águas. Essa figura mitológica foi difundida no País, após o século XVII.
Outros pesquisadores creditam a lenda da Iara às leituras que os colonizadores lusos empreenderam dos autores clássicos, a exemplo de Virgílio (Eneida), de Heródoto (Epítetos) e de Homero (Ilíada e Odisséia). Em seus trabalhos, todos eles se referiram à figura sedutora e fatal daquele mito, ora sob forma de mulher, ora sob forma de ave ou de anfíbio. Desse modo, os portugueses absorveram as lendas marítimas e repassaram-nas aos brasileiros. É importante lembrar que o poeta Luís de Camões, no século XVI, em Os Lusíadas, mencionou, diversas vezes, a presença de sereias na rota das navegações. E os tesouros e palácios, ofertados pela Iara, vêm corroborar com a forte presença de uma cultura importada - a européia - já que os indígenas (excetuando-se aqueles que absorveram e/ou absorvem muitos elementos da cultura do colonizador) não possuem o mesmo referencial de riqueza que os detentores do poder. É provável, então, que exista um elo entre a Iara brasileira e as sereias que foram ressaltadas pelos autores clássicos.
De acordo com Câmara Cascudo, no tocante à Iara, houve toda uma contribuição dos escravos negros, destacando-se a Kianda, a sereia africana; a figura poderosa de Osum, o orixá dos rios, lagos e lagoas, da teogonia negra; e a cultuada Iemanjá, que os afro-descendentes reverenciam como a divina Mãe D´água ou Aiocá, deusa das águas, sereia do mar, ou orixá feminino das águas. Segundo Cascudo (1972), por outro lado, a Iemanjá personaliza a água salgada: tem na concha do mar o seu fetiche, e protege quem vive do mar ou depende de amores. Assim como a Iara, ela possui muitos amantes, mas os carrega para o fundo do mar. Também é ciumenta, vingativa e cruel, como todas as égides primitivas. Grande protetora das viagens marítimas e dos pescadores, Iemanjá passou pelo processo sincrético das deusas marinhas. E, graças ao sincretismo cultural ocorrido no País, ora ela é considerada como Nossa Senhora do Rosário, ora é tida como Nossa Senhora das Candeias.
No Norte do Brasil, existem várias lendas referentes à Iara. Uma delas ressalta que ela é tão bonita e possui uma voz tão linda, que enfeitiça todos os homens. E o seu canto representa a própria perdição dos pescadores. Quem olhar para a superfície dos rios e vir a Iara, de imediato, sentir-se-áeras o fundo das uas,omens solteiros e daqueles que esteterminadas id atraído pela bela sereia, sendo arrastado para o seu palácio de cristais verdes, no fundo das águas, encontrando a morte, através de núpcias funestas.
Uma outra versão dessa lenda registra a história de uma sereia que vivia no fundo dos rios e igarapés, à sombra das florestas virgens. Certa noite, um índio sonhou com essa bela jovem de cabelos louros, olhos azuis e pele muito branca, que morava em um castelo de cristal, coberto de ouro e safiras, e de onde provinha uma música celestial. Com tantos atrativos, logo caiu de amores por ela, principalmente após ter ouvido o seu canto e as suas juras de amor eterno. Navegando pelo rio, ele percebeu que, sobre as águas, formou-se uma choupana e, em seguida, sorrindo-lhe, surgiu a Iara. Apaixonado e enfeitiçado como estava, ele dirigiu-se à choupana com a sua canoa. Naquele preciso momento, porém, a sereia o agarrou e, juntos, índio e sereia mergulharam para nunca mais voltar.
Segundo uma outra lenda corrente, havia um belo índio tapuio, filho de um tuxaua valente e ousado, que estava sempre triste, apesar de saber manejar a zarabatana com destreza; de, com mais coragem do que todos, brandir o tacape e retesar o arco; de representar o orgulho da tribo; de ganhar os jogos que celebram as festas; e de, diante dele, os próprios anciãos se curvarem em sinal de respeito. Sua mãe lhe perguntou, então, o porquê de tanta tristeza. Ao que ele explicou que tinha visto uma jovem belíssima, com uma voz harmoniosa, lindos olhos verdes e cabelos louros como o ouro, presos por flores de mureré. Essa jovem lhe estendera os braços, como se quisesse neles se entrelaçar, e, cantando, desaparecera nas águas do igarapé.
Ao ouvir os lamentos do índio, a mãe pediu-lhe, chorando: “Por favor, meu filho, não volte mais ao igarapé. A mulher que você viu, ali, é a Iara. O seu sorriso é a morte. Não ceda aos seus encantos.” Entretanto, o tapuio decidiu não seguir os conselhos maternos. Ao pôr-do-sol, integrantes da tribo viram e ouviram, de longe, uma mulher cantando e, ao seu lado, o vulto de um homem. Quando um índio mais corajoso ousou se aproximar do local, rapidamente as águas do igarapé se abriram, e, nelas, sereia e tapuio mergulharam. Escusado dizer que o índio jamais retornou à sua aldeia.
Outra versão da lenda da Iara relata que um rapaz, que estava prestes a se casar, adormecera perto de um rio. Era noite de lua cheia, havia luz no firmamento, e as matas estavam mais iluminadas do que nas noites anteriores. De repente, aquele rapaz foi despertado por uma voz que o chamava pelo nome. Sem pensar duas vezes, ele se dirigiu às margens do rio, encostando-se no tronco de um ingazeiro. Olhou para as águas, desconfiado, e distinguiu um ponto luminoso no centro delas. Esse ponto se alargou, até alcançar grandes proporções. Ao mesmo tempo, o rapaz sentiu um torpor em todo o corpo, que ameaçava paralisar-lhe os membros. Começou a suar frio e um grande terror surgiu em seus pensamentos. Apesar de tudo isso, uma força imensa e poderosa o obrigou a se concentrar na parte iluminada das águas.
Daí, algo extraordinário ocorreu. A superfície do rio abriu-se no centro da área iluminada, e, dela, lentamente, emergiu uma jovem deslumbrante, enquanto gotas de água pareciam formar colares de pérolas, com o precioso banho de luz que recebiam. A pele da jovem era da cor dos lírios; os cabelos louros, tal qual reflexos de ouro; os olhos transparentes, como duas pedras de esmeralda; e os lábios provocantes. Prometendo delícias e prazeres inesgotáveis, ela caminhava em direção ao rapaz, com um olhar diabolicamente sedutor. Estava nua da cintura para cima, podendo-se ver os seus contornos exuberantes, de sedução e voluptuosidade sem limites. Os dois se aproximaram, as defesas do rapaz foram se dissipando, e ele sentiu um beijo em sua face. Nessa hora, percebeu que os lábios da jovem eram úmidos e frios. Mas não houve tempo para reagir. Naquele instante, o rapaz escorregou e caiu na água. Antes que afundasse, porém, ele desmaiou. Por sorte, alguém que passava pelo rio conseguiu tirá-lo das águas. Salvo por um milagre, trêmulo e abatido, ele contou a todos: fora a Iara, a linda jovem que possuía um irresistível magnetismo e os braços assassinos.
Às vezes, dizem que a Iara pode se apresentar, também, sob a forma masculina, como no mito do Boto - que à noite se transforma em um homem muito formoso e educado, vestido de branco, que atrai as caboclas para o seu palácio encantado, no fundo das águas, matando-as afogadas. Os nortistas, que utilizam o mito do Boto para arrefecer a ira dos maridos traídos e dos pais enganados (quando suas mulheres ou filhas engravidam fora do âmbito doméstico) creditam a fuga ou o desaparecimento de seus entes queridos, ainda hoje, ao poder de sedução da Iara. Em outras palavras, quando alguém desaparece, a culpa é sempre da bela sereia. Contudo, o simbolismo mais propagado da Iara é o da sedução mortal. No Norte, essa crença é tão forte que, ao anoitecer, muitas pessoas não se atrevem a passar perto dos rios e igarapés. Para poder se livrar da sedução da Iara, diz o povo, deve-se comer muito alho, ou esfregá-lo por todo o corpo.
Todas essas lendas, que fazem parte do folclore brasileiro, já serviram de fonte de inspiração para poetas, escritores e artistas, tais como Olavo Bilac, José de Alencar, Afonso Arinos, Melo Moraes Filho, Manuel Santiago e Coelho Neto, que incluíram a Iara (e outras lendas) em seus poemas, sonetos, contos e pinturas.
É importante deixar registrado, por fim, que os índios brasileiros possuem representações e mitos aquáticos, mas que, nenhum deles, incorpora as qualidades malignas e fatais da Iara. Em verdade, eles sempre procuram algum remédio para combater as maldades, sublimando, inclusive, a própria morte. Em seu imaginário, os rios e igarapés representam uma fonte de sobrevivência e, não, um caminho para a morte. E como não reprimem a sexualidade, eles também não sentem necessidade de criar figuras sensuais como a Iara. Quando os indígenas citam a beleza das cunhãs, estão enaltecendo essa qualidade como uma referência estética e, não, como objeto de libido. A sua Mãe-d’Água, contrariamente à Iara, é uma figura bondosa e importante: como a guardiã dos rios, ela se materializa nas plantas e flores aquáticas que alimentam todos os seres vivos de água doce.
Fontes consultadas:
A mulher-peixe chegou ao País, depois do descobrimento, através dos seus colonizadores. Estes, além da presença física, da língua e dos hábitos, trouxeram, ainda, os seus valores, mitos, lendas e superstições. Nesse sentido, a herança cultural européia misturou-se às culturas indígena e africana, permutaram-se conhecimentos e valores, surgindo, através do sincretismo, um amálgama sui generis. Na Região Norte, em particular, a permanente interação com os rios e igarapés, por parte dos(as) caboclos(as), deu origem a várias lendas que evidenciam elementos representativos da vida e da morte. A Iara, uma das mais belas figuras aquáticas, é uma delas.
Para os índios, Iara significa Senhora das Águas ou Ninfa das Águas. Também é chamada de Uyára e, em tupi, de Uauyára, representando uma figura de dupla imagem, que pode ser tanto feminina quanto masculina. De acordo com os nortistas, a sereia habita nos rios e em seus afluentes, mas só aparece diante de homens solteiros, ou daqueles que estão prestes a se casar. Sendo metade peixe e metade mulher, ela pode ser vista penteando os cabelos, cantando ou, simplesmente, conversando com algum transeunte. E o pretenso parceiro, como se estivesse sob efeito hipnótico, é levado para as águas profundas, morrendo logo afogado.
De acordo com estudiosos, a Iara representa a simbiose encantada de uma mulher tentadora: possui um bonito rosto europeu - com cabelos louros e traços delicados - uma cauda de peixe sempre submersa, com escamas de várias cores, e uma voz maravilhosa. Por meio de seu canto, ela exerce, inclusive, uma atração irresistível junto aos homens, conseguindo arrastá-los para o fundo das águas. Essa figura mitológica foi difundida no País, após o século XVII.
Outros pesquisadores creditam a lenda da Iara às leituras que os colonizadores lusos empreenderam dos autores clássicos, a exemplo de Virgílio (Eneida), de Heródoto (Epítetos) e de Homero (Ilíada e Odisséia). Em seus trabalhos, todos eles se referiram à figura sedutora e fatal daquele mito, ora sob forma de mulher, ora sob forma de ave ou de anfíbio. Desse modo, os portugueses absorveram as lendas marítimas e repassaram-nas aos brasileiros. É importante lembrar que o poeta Luís de Camões, no século XVI, em Os Lusíadas, mencionou, diversas vezes, a presença de sereias na rota das navegações. E os tesouros e palácios, ofertados pela Iara, vêm corroborar com a forte presença de uma cultura importada - a européia - já que os indígenas (excetuando-se aqueles que absorveram e/ou absorvem muitos elementos da cultura do colonizador) não possuem o mesmo referencial de riqueza que os detentores do poder. É provável, então, que exista um elo entre a Iara brasileira e as sereias que foram ressaltadas pelos autores clássicos.
De acordo com Câmara Cascudo, no tocante à Iara, houve toda uma contribuição dos escravos negros, destacando-se a Kianda, a sereia africana; a figura poderosa de Osum, o orixá dos rios, lagos e lagoas, da teogonia negra; e a cultuada Iemanjá, que os afro-descendentes reverenciam como a divina Mãe D´água ou Aiocá, deusa das águas, sereia do mar, ou orixá feminino das águas. Segundo Cascudo (1972), por outro lado, a Iemanjá personaliza a água salgada: tem na concha do mar o seu fetiche, e protege quem vive do mar ou depende de amores. Assim como a Iara, ela possui muitos amantes, mas os carrega para o fundo do mar. Também é ciumenta, vingativa e cruel, como todas as égides primitivas. Grande protetora das viagens marítimas e dos pescadores, Iemanjá passou pelo processo sincrético das deusas marinhas. E, graças ao sincretismo cultural ocorrido no País, ora ela é considerada como Nossa Senhora do Rosário, ora é tida como Nossa Senhora das Candeias.
No Norte do Brasil, existem várias lendas referentes à Iara. Uma delas ressalta que ela é tão bonita e possui uma voz tão linda, que enfeitiça todos os homens. E o seu canto representa a própria perdição dos pescadores. Quem olhar para a superfície dos rios e vir a Iara, de imediato, sentir-se-áeras o fundo das uas,omens solteiros e daqueles que esteterminadas id atraído pela bela sereia, sendo arrastado para o seu palácio de cristais verdes, no fundo das águas, encontrando a morte, através de núpcias funestas.
Uma outra versão dessa lenda registra a história de uma sereia que vivia no fundo dos rios e igarapés, à sombra das florestas virgens. Certa noite, um índio sonhou com essa bela jovem de cabelos louros, olhos azuis e pele muito branca, que morava em um castelo de cristal, coberto de ouro e safiras, e de onde provinha uma música celestial. Com tantos atrativos, logo caiu de amores por ela, principalmente após ter ouvido o seu canto e as suas juras de amor eterno. Navegando pelo rio, ele percebeu que, sobre as águas, formou-se uma choupana e, em seguida, sorrindo-lhe, surgiu a Iara. Apaixonado e enfeitiçado como estava, ele dirigiu-se à choupana com a sua canoa. Naquele preciso momento, porém, a sereia o agarrou e, juntos, índio e sereia mergulharam para nunca mais voltar.
Segundo uma outra lenda corrente, havia um belo índio tapuio, filho de um tuxaua valente e ousado, que estava sempre triste, apesar de saber manejar a zarabatana com destreza; de, com mais coragem do que todos, brandir o tacape e retesar o arco; de representar o orgulho da tribo; de ganhar os jogos que celebram as festas; e de, diante dele, os próprios anciãos se curvarem em sinal de respeito. Sua mãe lhe perguntou, então, o porquê de tanta tristeza. Ao que ele explicou que tinha visto uma jovem belíssima, com uma voz harmoniosa, lindos olhos verdes e cabelos louros como o ouro, presos por flores de mureré. Essa jovem lhe estendera os braços, como se quisesse neles se entrelaçar, e, cantando, desaparecera nas águas do igarapé.
Ao ouvir os lamentos do índio, a mãe pediu-lhe, chorando: “Por favor, meu filho, não volte mais ao igarapé. A mulher que você viu, ali, é a Iara. O seu sorriso é a morte. Não ceda aos seus encantos.” Entretanto, o tapuio decidiu não seguir os conselhos maternos. Ao pôr-do-sol, integrantes da tribo viram e ouviram, de longe, uma mulher cantando e, ao seu lado, o vulto de um homem. Quando um índio mais corajoso ousou se aproximar do local, rapidamente as águas do igarapé se abriram, e, nelas, sereia e tapuio mergulharam. Escusado dizer que o índio jamais retornou à sua aldeia.
Outra versão da lenda da Iara relata que um rapaz, que estava prestes a se casar, adormecera perto de um rio. Era noite de lua cheia, havia luz no firmamento, e as matas estavam mais iluminadas do que nas noites anteriores. De repente, aquele rapaz foi despertado por uma voz que o chamava pelo nome. Sem pensar duas vezes, ele se dirigiu às margens do rio, encostando-se no tronco de um ingazeiro. Olhou para as águas, desconfiado, e distinguiu um ponto luminoso no centro delas. Esse ponto se alargou, até alcançar grandes proporções. Ao mesmo tempo, o rapaz sentiu um torpor em todo o corpo, que ameaçava paralisar-lhe os membros. Começou a suar frio e um grande terror surgiu em seus pensamentos. Apesar de tudo isso, uma força imensa e poderosa o obrigou a se concentrar na parte iluminada das águas.
Daí, algo extraordinário ocorreu. A superfície do rio abriu-se no centro da área iluminada, e, dela, lentamente, emergiu uma jovem deslumbrante, enquanto gotas de água pareciam formar colares de pérolas, com o precioso banho de luz que recebiam. A pele da jovem era da cor dos lírios; os cabelos louros, tal qual reflexos de ouro; os olhos transparentes, como duas pedras de esmeralda; e os lábios provocantes. Prometendo delícias e prazeres inesgotáveis, ela caminhava em direção ao rapaz, com um olhar diabolicamente sedutor. Estava nua da cintura para cima, podendo-se ver os seus contornos exuberantes, de sedução e voluptuosidade sem limites. Os dois se aproximaram, as defesas do rapaz foram se dissipando, e ele sentiu um beijo em sua face. Nessa hora, percebeu que os lábios da jovem eram úmidos e frios. Mas não houve tempo para reagir. Naquele instante, o rapaz escorregou e caiu na água. Antes que afundasse, porém, ele desmaiou. Por sorte, alguém que passava pelo rio conseguiu tirá-lo das águas. Salvo por um milagre, trêmulo e abatido, ele contou a todos: fora a Iara, a linda jovem que possuía um irresistível magnetismo e os braços assassinos.
Às vezes, dizem que a Iara pode se apresentar, também, sob a forma masculina, como no mito do Boto - que à noite se transforma em um homem muito formoso e educado, vestido de branco, que atrai as caboclas para o seu palácio encantado, no fundo das águas, matando-as afogadas. Os nortistas, que utilizam o mito do Boto para arrefecer a ira dos maridos traídos e dos pais enganados (quando suas mulheres ou filhas engravidam fora do âmbito doméstico) creditam a fuga ou o desaparecimento de seus entes queridos, ainda hoje, ao poder de sedução da Iara. Em outras palavras, quando alguém desaparece, a culpa é sempre da bela sereia. Contudo, o simbolismo mais propagado da Iara é o da sedução mortal. No Norte, essa crença é tão forte que, ao anoitecer, muitas pessoas não se atrevem a passar perto dos rios e igarapés. Para poder se livrar da sedução da Iara, diz o povo, deve-se comer muito alho, ou esfregá-lo por todo o corpo.
Todas essas lendas, que fazem parte do folclore brasileiro, já serviram de fonte de inspiração para poetas, escritores e artistas, tais como Olavo Bilac, José de Alencar, Afonso Arinos, Melo Moraes Filho, Manuel Santiago e Coelho Neto, que incluíram a Iara (e outras lendas) em seus poemas, sonetos, contos e pinturas.
É importante deixar registrado, por fim, que os índios brasileiros possuem representações e mitos aquáticos, mas que, nenhum deles, incorpora as qualidades malignas e fatais da Iara. Em verdade, eles sempre procuram algum remédio para combater as maldades, sublimando, inclusive, a própria morte. Em seu imaginário, os rios e igarapés representam uma fonte de sobrevivência e, não, um caminho para a morte. E como não reprimem a sexualidade, eles também não sentem necessidade de criar figuras sensuais como a Iara. Quando os indígenas citam a beleza das cunhãs, estão enaltecendo essa qualidade como uma referência estética e, não, como objeto de libido. A sua Mãe-d’Água, contrariamente à Iara, é uma figura bondosa e importante: como a guardiã dos rios, ela se materializa nas plantas e flores aquáticas que alimentam todos os seres vivos de água doce.
Fontes consultadas:
AMARAL, Rita de C. P.; ITTNER, Tânia R. C.; BAHER, Vivien I. Coleção folclore em atividades. Blumenau: Edições Sabida, [19--].
ARAÚJO, Alceu Maynard. Brasil folclore: histórias, costumes e lendas. São Paulo: Editora Três, 1982.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1954.
______. Dicionário do folclore brasileiro - A-J. Brasília: Instituto Nacional do Livro, 1972.
______. __________. São Paulo: Melhoramentos; [Brasília]: Instituto Nacional do Livro, 1979.
______. Lendas brasileiras: 21 histórias criadas pela imaginação do nosso povo. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [19--].
DEUSA Iara. Disponível em:
Acesso em: 23 ago. 2006.
ESSAS figuras populares do nosso folclore. Disponível em:
Acesso em: 26 ago. 2006.
HORTA, Carlos Felipe de Melo Marques (Org.). O grande livro do folclore. Belo Horizonte: Leitura, 2000.
A IARA. Disponível em:
Acesso em: 23 ago. 2006.
______. Disponível em:
Acesso em: 23 ago. 2006.
MAGALHÃES, Basílio de. O folclore no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1960.
NERY, F. J. de Santa-Anna. Folclore brasileiro. Recife: Fundaj, Ed. Massangana, 1992.
RIBEIRO, José. Brasil no folclore. Rio de Janeiro: Gráfica Editora Aurora, 1970.
VALENTE, Waldemar. Folclore brasileiro. Rio de Janeiro: Funarte, 1979.
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