SERRAÇÃO DA VELHA
Semira Adler Vainsencher
semiraadler@gmail.com
Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco
Semira Adler Vainsencher
semiraadler@gmail.com
Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco
O carnaval e os primeiros folguedos carnavalescos foram introduzidos pelos colonizadores portugueses, nos séculos XV e XVI. Dentre os folguedos mais populares, encontrava-se a serração da velha. Em Portugal, ele era encenado na noite da quarta-feira que precedia o terceiro domingo da Quaresma. A serração da velha representava uma espécie de pausa no rigor do jejum e da penitência quaresmal. Neste sentido, os jovens realizavam desfiles nas ruas usando máscaras e fantasias, coletavam dinheiro e doces, declamavam poesias, cantavam e dançavam. Tudo isso, ao som do triquelitraque - um instrumento constituído por uma tábua e várias fileiras de martelinhos que nela batiam, produzindo um barulho sui generis - e de latas arrastadas.
A leitura do testamento da velha era uma prática corrente, levando-se ao conhecimento público os beneficiários na partilha dos bens. Em seguida, um jovem - sempre alguém do sexo masculino - erguia o instrumento de suplício (no caso, o serrote), sobre um pedaço de madeira, de tábua ou um espantalho de pano e, mediante o vai-e-vem do braço, fazia de conta que serrava a velha, enquanto os demais participantes cantavam:
Estamos no meio da Quaresma,
sem provarmos o café,
Vamos serrar esta velha,
para o altar de S. José.
Estamos no meio da Quaresma,
sem vermos nado [sic] do teu amor,
Vamos serrar esta velha,
para o altar de Nosso Senhor.
Ferre-se a velha,
Força no serrote,
Serre-se a velha,
Dentro do pipote.
Esta velha tem malícia,
Esta velha vai morrer,
Venha ver serrar a velha,
Minha gente, venha ver.
Serra, serra, serra a velha
Puxa a serra, serrador,
Que esta velha deu na neta,
Por lhe ouvir falar de amor.
As pessoas que assistiam ao folguedo repetiam: serra a velha, serra a velha, serra a velha! Ou: "serre-se a velha em postas de cinco centímetros".
Ao que o serrador continuava perguntando:
Que castigo merece a velha, dizei-me, senhores?
E o público, como em um julgamento coletivo, respondia:
Serre-se a velha! Força no serrote! Serre-se a velha! Força no serrote!
Às vezes, a folia terminava em tragédia, quando os jovens decidiam “serrar” determinada senhora da localidade, e seus familiares reagiam jogando água quente no grupo. Em Portugal, durante a encenação, era costume se oferecer aos participantes um prato de doces. Então, os jovens agradeciam com aplausos e gritos de alegria, e se dirigiam para outras ruas, repetindo a brincadeira.
A serração da velha representava uma válvula de escape da juventude, frente a determinados pontos que visavam: 1) relaxar o controle dos cardápios dos dias santos, que exigiam os tradicionais jejuns e penitências (o folguedo rompia com a austeridade da Semana Santa, e com o código de restrição alimentar e o jejum conventual, peculiar à Quaresma, em memória ao sofrimento de Jesus Cristo; 2) reivindicar maior liberdade nos namoros - as moças eram muito reprimidas, sendo subjugadas por mães, avós, tias e madrinhas, tidas como guardiãs da honra e dos bons costumes; 3) incentivar o surgimento de um modelo feminino mais libertário, que possuísse mais direitos; e 4) aliviar as tensões sociais existentes entre as gerações.
Não se pode afirmar, com precisão, quando e como essas folias começaram a ser encenadas no Brasil, mas, embora com pouca freqüência, elas foram registradas em crônicas do começo do século XVIII.
Câmara Cascudo (1979) ressaltou a serração da velha no Nordeste, no final do século XIX, afirmando que o folguedo fazia parte do calendário religioso da Quaresma - embora haja indicações de sua ocorrência fora desse período – e que era utilizado, inclusive, com intenções políticas, em demonstrações de desagrado, na residência de algum governante decaído ou candidato derrotado em eleições. De acordo com o folclorista, um grupo de foliões serrava uma tábua, aos gritos estridentes e prantos intermináveis, fingindo serrar uma velha que, representada ou não por algum dos vadios da banda, lamentava-se através de um berreiro ensurdecedor. Câmara Cascudo localizou, também, expressões de desagrado em relação à folia, provenientes de pessoas que se sentiam ameaçadas por ela, e assinalou que, em fins do século XIX, o Código de Posturas de Papari, (hoje, Nísia da Floresta, no Rio Grande do Norte) já proibira sua representação naquela localidade.
Durante os séculos XVIII e XIX, o folguedo era encenado no litoral sul do Rio de Janeiro, e em algumas cidades do interior nordestino. No presente, porém, restam pouquíssimas lembranças dessa folia em pequenos municípios da Região Nordeste. Quando muito, apenas meros resquícios da serração da velha: uns detalhes tão pequenos que o próprio passar do tempo tem se encarregado de eliminar por completo.
Recife, 21 de janeiro de 2008.
Fontes consultadas:
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. São Paulo: Melhoramentos; [Brasília]: Instituto Nacional do Livro, 1979.
______. __________.9. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1954.
CARNAVAL. Disponível em:http://www.pime.org.br/missaojovem/mjhistbrasilcarnaval.htm Acesso em: 20 ago. 2007.
COSTA, Suely Gomes. A serração das velhas. Disponível em:
FREGUESIA de parada. Disponível em:
NICOLAU, Mário. Justiça popular na calada da noite. Disponível em:http://www.asbeiras.pt/?area=coimbra&numero=13953&ed=19032004 Acesso em: 20 ago. 2007.
PORTUGAL: Alto Minho – Distrito de Viana do Castelo – Concelho de Viana do Castelo – Freguesia de AFIFE. Disponível em:
A QUARESMA e a Semana Santa. Disponível em:
RITUAIS de vida e morte. Disponível em:
SERRAÇÃO da velha. Disponível em:
SERRAÇÃO da velha. Disponível em:
SERRAÇÃO da velha. Disponível em:
VAZ, Anabela. Serração da velha juntou mais de uma centena de pessoas. Disponível em:
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