segunda-feira, 18 de maio de 2009

ENTERRO JUDEU

ENTERRO JUDEU
Semira Adler Vainsencher
Pesquisadora da Fundação Joaquim Nabuco

Da mesma forma que existe um modo de vida judaico, existem, também, rituais a serem seguidos por ocasião da morte. Quando morre um judeu, os familiares devem providenciar seu enterro rapidamente. De acordo com as leis mosaicas, o corpo deve ser sepultado logo que for possível, de preferência no mesmo dia da morte e, também, enquanto houver luz natural: Seu cadáver não poderá permanecer ali durante a noite, mas tu o sepultarás no mesmo dia (Deuteronômio 21:23). Enquanto o morto permanecer insepulto, a sua alma não ficará em repouso. Ela só descansará quando o corpo for enterrado.

Portanto, adiar o sepultamento, sem motivo justo, é um desrespeito ao morto e uma interferência nos planos do Criador. O enterro é postergado nas seguintes ocasiões: 1. quando alguém morre no Yom Kipur (o Dia do Perdão); e 2. quando a morte ocorre em uma sexta-feira à noite, início do Shabat (o Dia do Descanso Semanal). No primeiro caso, o enterro é realizado no dia seguinte. E, no segundo caso, o sepultamento só ocorre no anoitecer do sábado, ou quando surge a primeira estrela no céu. Excetuando-se essas duas ocasiões, tolera-se adiar o enterro, ainda, quando se aguarda a chegada de parentes que estão distantes; ou quando os familiares transportam o corpo para ser enterrado em Israel.

Segundo a religião judaica, preparar o morto para o sepultamento é um cerimonial de grande relevância, porque o corpo aloja a alma e, por essa razão, deve ser mantido muito limpo. O cemitério, por sua vez, é denominado Beit Haolam, que significa, na língua hebraica, Casa do Mundo ou Casa da Eternidade.

Com o advento da morte, a alma, que até então estava abrigada no corpo, inicia uma dolorosa separação do mesmo. Tal processo se dá conforme vai ocorrendo a decomposição. Quando o corpo é sepultado na terra, ele se desintegra lentamente, o que é confortante para a alma. Corpo e alma são entidades que permanecem interligadas após a morte, e o processo de desligamento não é imediato. A alma continua em contato com o corpo, mesmo depois do enterro, e ainda compartilha de todas as suas sensações. A decomposição, portanto, é um processo fundamental e benéfico para a alma. Por isso, os preceitos mosaicos proíbem a cremação já que esta implica na súbita separação artificial entre corpo e alma. Como diz o Talmud: O enterro não é para o bem dos vivos, mas sim para o dos mortos (Sanhedrin 47a).

Além disso, a religião judaica ressalta que um único osso, localizado na parte posterior do pescoço, jamais se decompõe. E é a partir desse osso - denominado osso luz - que o corpo será reconstruído na futura Era Messiânica, quando todos os mortos serão ressuscitados. Em razão disso, a cremação do corpo não é aceita; já que a ressurreição é uma crença fundamental do judaísmo, conforme expresso por Maimônides, em seus Treze Princípios da Fé.

Quando morre um judeu, a família deve avisar à Chevra Kadisha - uma Sociedade Funerária ou Comitê Fúnebre encarregado de preparar o morto e conduzir o cerimonial do enterro. Esse Comitê também se encarrega de administrar o cemitério. Via de regra, as primeiras providências tomadas são as seguintes: 1. estirar os braços do morto ao longo do corpo (os braços nunca podem ser cruzados); 2. fechar os seus olhos; 3. retirar todos os adornos que esteja usando (brinco, relógio, pulseira, anel, peruca, dentadura postiça, óculos, esmalte nas unhas, batom, próteses removíveis, e outros); e 4. cobrir o corpo todo, dos pés à cabeça, com um lençol branco, de algodão ou de linho.

Depois de se cobrir o corpo, ninguém mais pode vê-lo: nem mesmo os próprios filhos, parentes ou amigos. Não é permitido observar a sua desintegração. Olhar o cadáver é uma violação ao princípio de kevod ha'met (o respeito aos mortos), representando um desrespeito à pessoa que viveu, e significa limitar a morte, apenas, aos aspectos físicos. Espera-se que todos conservem, na memória, a imagem da pessoa em vida, sendo isto um passo para que o falecido possa alcançar a dimensão espiritual.

Todos os enterros judeus são sempre idênticos. O caixão é feito com um tipo de madeira simples, o mínimo dispendioso possível (em geral, tábuas de pinho, que se deterioram facilmente), forrado com um tecido preto e, na parte superior, é colocada a Estrela de Davi com as iniciais do morto. Somente isso! Nenhum outro adereço, como coroa de flores, velas ou caixões suntuosos, é permitido. Segundo o judaísmo, as pessoas vêm do pó e voltam ao pó. Toda e qualquer ostentação nos funerais é interditada. Como ninguém nasce com adornos, também não pode ser sepultado com eles: precisa partir com a maior simplicidade possível: Portanto, se, em vida, aquela pessoa era rica, na morte, receberá o mesmo tratamento que a pobre. Dessa maneira, pelo menos na morte, ricos e pobres se igualam.

Quando o carro da funerária chega ao Cemitério Israelita, o caixão é levado a um quarto reservado que tem um lavatório e uma bancada, e cujas paredes são forradas com azulejos brancos. Ali, o Comitê Fúnebre irá preparar o morto para o sepultamento. As mulheres preparam um corpo feminino e, os homens, um masculino. Em primeiro lugar, retiram o corpo do caixão e o colocam sobre a bancada, onde é lavado com álcool. Este ritual representa um tributo valioso prestado ao falecido, por parte da comunidade judaica, sendo denominado tahará (purificação). Segundo a tradição, o ritual da purificação se repete há milênios: assim como veio, assim irá, isto é, da mesma forma que um recém-nascido é lavado, após o nascimento, e ingressa no mundo fisicamente limpo e espiritualmente puro, ao partir, também precisa ser purificado, ainda que de maneira simbólica.

A seguir, o corpo é vestido com uma mortalha, feita com morim branco e composta pelos seguintes elementos: uma calça comprida fechada até os pés, uma camisa, um camisão, uma espécie de cinto, um capuz (para cobrir a cabeça e o pescoço), e dois sacos, abertos em uma dos lados (para cobrir as duas mãos). A mortalha já pode vir confeccionada, ou é costurada à mão durante o velório. Se, por algum motivo, não houver uma disponível, o morto pode ser enrolado somente com um lençol branco de linho ou algodão.

O passo seguinte é colocar uma pedra sobre cada olho e, outra, na boca. Isto impedirá, de acordo com o judaísmo, que o falecido venha a questionar a própria morte, ou que, antes do Dia do Juízo Final, encontre com Deus. Caso a pessoa que morreu seja do sexo masculino, por cima da mortalha coloca-se o seu talit (uma espécie de xale, com franjas nas extremidades, que os judeus usam durante as orações). Feito isso, fecha-se a tampa do caixão e, só então, ele é colocado sobre a bancada do velório. Vale ressaltar que, todas as ações relativas à preparação do corpo para o enterro, são sagradas e consideradas mitzvot (caridades).

As orações fúnebres são recitadas em hebraico, seja por um rabino, seja por um membro do Chevra Kadisha, mas, na ausência deles, qualquer integrante da comunidade israelita pode conduzir a cerimônia. O próximo ritual é denominado keriá: um sinal tradicional de luto que remete aos tempos bíblicos e, no qual, um pedaço da roupa dos enlutados é rasgada. Este é um sinal de que, diante da perda do ente querido, o coração dos parentes próximos está dilacerado.

Segundo a Torá (os cinco livros que contêm, entre outros, a compilação do judaísmo: os relatos sobre a criação do mundo e a origem da humanidade; o pacto de D’us com Abraão e seus filhos; a libertação dos filhos de Israel do Egito; a peregrinação de quarenta anos pelo deserto, até a Terra Prometida; os mandamentos e as leis que D’us entregou a Moisés), quando Jacob recebeu a falsa notícia de que seu filho, José, havia sido devorado por uma fera, reagiu rasgando as vestes (Gênesis 37:34). Davi rasgou suas roupas, também, quando foi informado sobre a morte do Rei Saul e do seu filho, Jonathan.. Durante o desenrolar desse ritual, recita-se a benção Baruch Dayan Emet (Bendito seja o verdadeiro Juiz) em uma demonstração de que, apesar da tragédia, a crença em D’us continua inabalável.

Na saída do cemitério há um lavatório, onde os judeus, segundo a tradição, têm que lavar as mãos depois dos sepultamentos (netilat iadaim). De acordo com a crença hebréia, ao se lavar as mãos e a água permanecer cristalina, significa que a pessoa não derramou o sangue do falecido.

Ao voltar do cemitério, a família senta-se em shivá: todos devem permanecer em casa, de luto, durante sete dias. Uma mitzvá muito importante, e uma das maneiras judaicas de se fazer o bem, é aparecer na casa dos enlutados, logo após o sepultamento, ou durante o período de shivá, e fazer-lhe companhia, sentando-se ao seu lado e oferecendo um ombro amigo. Durante aquele período, um grupo de dez homens (mínian) reza as orações fúnebres (kaddish).

Alguns meses depois do enterro realiza-se a cerimônia da matzeiva, “descobrimento do túmulo” e inauguração da lápide, ou pedra tumular da sepultura judaica. Nessa cerimônia, o túmulo é coberto com um pano preto, em sinal de luto; reza-se o kaddish e, no final, retira-se o pano. Com esse ritual, encerra-se o período de luto. As pessoas colocam pedrinhas sobre a sepultura do ente querido, em sinal de resignação com a sua morte. Cabe salientar que o ritual de colocação das pequenas pedras sobre o túmulo é efetuado sempre que se visita as sepulturas, indicando que o morto é lembrado e reverenciado.

A religião judaica não apóia o luto excessivo porque este não é saudável para os vivos. Se o preto não se constituir na cor que sempre usou, o enlutado não deve usar roupa e gravata pretas, ou colocar uma tarja negra na lapela: precisa seguir vivendo a sua vida e se conformar com a morte.

Em duas ocasiões, apenas, a lei mosaica permite a abertura do túmulo e a retirada dos ossos. Primeiro: quando a comunidade judaica não possuía, ainda, seu próprio cemitério. Neste caso, assim que seja inaugurado um cemitério judeu, é permitido desenterrar os ossos e sepultá-los ali, para que o morto permaneça junto dos demais hebreus. E, segundo, quando a família deseja enterrar seus restos mortais no solo de Israel. Excetuando-se esses dois casos, qualquer ação que venha a perturbar o repouso do falecido recebe a denominação nivúl hamet (representa uma ofensa ao mesmo).

A religião judaica não aceita que se cometa suicídio, caso as pessoas estejam de posse das suas faculdades físicas e mentais (em hebraico, bedáat). Os suicidas são sempre enterrados à parte, afastados de todos os túmulos, geralmente próximo a um dos muros do cemitério. De acordo com a religião mosaica, somente D’us possui o direito de tirar a vida de alguém. No entanto, caso a pessoa se encontre em um estado grave de alienação mental, ou esteja sentindo uma dor física intensa, o suicídio é considerado anús: a pessoa estava fora de si e não pode ser responsabilizada por seus atos. Sendo assim, no sepultamento, merece receber os mesmos privilégios e tributos que uma pessoa falecida de morte natural. Em outras palavras: não é enterrada afastada dos demais.

Todos esses rituais judaicos foram trazidos para o Nordeste do Brasil, por ocasião do Descobrimento. No período da colonização, os judeus da Península Ibérica foram atraídos ao Brasil-Colônia especialmente em busca de liberdade religiosa. Muitos deles eram cristãos-novos (ou marranos), aqueles hebreus convertidos à força pelos católicos, para escapar das fogueiras da Inquisição. Devido à sua formação acadêmica e conhecimentos técnicos, eles chegaram como importantes auxiliares dos portugueses. Outros vieram como degredados, em virtude de práticas judaizantes de menor importância.

Vale ressaltar que, a despeito da conversão forçada ao catolicismo, as famílias judias continuavam seguindo suas tradições dentro de casa. Com o passar dos séculos, vários rituais continuaram sendo repetidos, sem que se soubesse mais o motivo de suas práticas. Trata-se, hoje, de indivíduos que se dizem católicos, em termos de religião, mas que reproduzem tradições hebréias. Isto pode ser observado em certos atos praticados no agreste e no sertão de Pernambuco, e em outros Estados nordestinos que, sem sombra de dúvida, foram absorvidos do judaísmo. Um deles, por exemplo, diz respeito à exigência de ser sepultado com mortalha e sem caixão. E, um outro, refere-se à prática de colocar pedrinhas sobre os túmulos. Mesmo sem saber, as pessoas que repetem esses costumes poderão ter uma ascendência judaica.

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